Esclarecimento
Catarina Malheiro, directora da revista Cuidar, vem por este meio assumir que na primeira edição da revista por lapso não foram atribuídos os créditos de autor dos artigos “Sweet December”, “Sweet October” e “ Pedaço de mim”apresentados por Ana Paula Lopes.
Tendo sido as apresentadas as desculpas à autora no momento imediato à detecção do erro e fazendo-o agora publicamente,publicando o artigo completo com a devida autoria.
O projeto fotográfico Sweet October é uma reflexão de empatia sobre as marcas de uma batalha com retratos de sobreviventes de cancro da mama, sendo este uma evolução natural do Sweet December Project, lançado em Dezembro de 2017 na conta de Instagram @sweetdecemberproject, cujos auto-retratos sonoros serviram como catarse para ultrapassar medos e ansiedades decorrentes do diagnóstico oncológico, ajudando a aceitar todas as alterações que este imputou à minha vida ao mesmo tempo que servem de ponte de entendimento entre mim e o espectador.
Quando nos é dado um diagnóstico oncológico todas as nossas expectativas e planos de vida desmoronam porque percebemos na pele que não somos imortais. E todos nós sabemos que na extremidade oposta da nossa vida, aguarda-nos a nossa morte, mas vivemos como se possuíssemos todo o tempo do mundo. O ser humano é perito em desperdiçar tempo e em adiar projectos e sonhos que o possam obrigar a sair fora da sua zona de conforto. Mas depois de a vida nos dizer que afinal o nosso tempo poderá ser mais reduzido do que aquilo que imaginavas, passas a valorizar outro tipo de coisas e procuras ser feliz com as pequenas coisas.
No decorrer dos tratamentos observei lentamente o definhar da minha vitalidade e identidade. O espelho devolvia-me uma imagem com a qual pouco ou nada me identificava. Prisioneira dentro de um corpo desconhecido, perdi a noção da unicidade, da pertença e dos limites do meu próprio corpo. Esta transformação física desencadeou uma metamorfose do meu espírito. Gradualmente senti descolar a minha identidade do meu corpo físico e daí emergiu uma nova versão de mim – Mais tolerante e confiante sobre aquilo que me define. Esta nova versão de mim irrompe do lugar mais denso e escuro para cicatrizar e libertar a mente do caos exterior em que me encontrava.
Pensei muitas vezes que isto me aconteceu por um motivo e que teria um dever cívico para com todas as pessoas que possam já ter sido diagnosticadas no passado, que estejam a ser no presente ou que venham a ser no futuro.
No desenrolar dos tratamentos fui tendo cada vez mais proximidade com outras realidades e percebi que existem muitas pessoas a sofrer em silêncio, com vergonha das suas cicatrizes, com receio de deixarem de ser amadas, com medo de como a sociedade reagirá ao facto de elas serem sobreviventes e foi com base nestas premissas que me entreguei ao projeto Sweet December Project e dar voz a quem sofre em silêncio.
Quantos de nós, sobreviventes oncológicos sentimos que só quem passou pelo mesmo que nós “fala a mesma língua”?
Pretendi assim fornecer a quem me rodeava, sejam eles amigos, familiares ou conhecidos, os meus conceitos e entendimento sobre esta nova realidade que metamorfoseou os meus dias.
O nome do projecto surgiu muito espontaneamente, uma vez que o mês de Dezembro representa a estação mais fria do ano, sugere um momento de introspecção e demarca as temporadas em que as noites são mais longas que os dias. O Inverno é aceite como a oportunidade de me conectar com o ciclo da vida que rege tudo na natureza e que me ensina que não há vida sem morte nem morte sem vida. Se aceitarmos este momento, ainda que nos pareça duro e quase impossível de ultrapassar, conseguiremos assumir as nossas diferenças na sua globalidade e aí percebemos a magia de estar no aqui e agora e percebemos que tudo se renova desde que estejamos abertos a essas mudanças.
Estender este projeto a outros doentes oncológicos em particular e ao público em geral decorreu do dever cívico que sentia para com todas as pessoas que como eu sofriam em silêncio por não se sentirem compreendidas. Procuro assim retirar o estigma associado a esta doença, fazendo com que as fotografias comuniquem ao mundo a realidade de um doente oncológico. O projeto inicial bifurcou em dois projetos fotográficos que inauguraram no mês de Outubro de 2019 – mês internacional de prevenção para o cancro da mama – o Sweet October Project, no IPO do Porto e o Pedaço de Mim, na estação de S. Bento. O grupo retratado em ambos os projetos é transversal, não estando limitado a uma faixa etária, género ou classe social, uma vez que também o cancro não faz uso destas distinções quando entra na vida de alguém.
No projeto Sweet October Project mantive a mesma linguagem visual do seu antecessor estando presente um dos auto-retratos. Através da manipulação da luz e da sombra, o conjunto de fotografias espelha a divergência entre dois sentimentos que passam a fazer parte da nossa vida: o medo de uma partida antecipada e a esperança de vivermos por mais um dia, um mês, um ano, uma década ou uma vida.
Cada retrato pretende assim transmitir a aceitação dessa dualidade, em vez de lutar contra ela. Uma vez que, ainda que possam existir dias em que só conseguimos ver a escuridão à nossa volta, cabe a cada um de nós optar por ascender através da luz da esperança e equilibrar a nossa vida entre estes dois opostos que passam a ser complementares. É aceitar a presença de ambos, mas
optar por virar o nosso rosto para o lado iluminado da vida, o lado mais leve e deixar assim a sombra e o peso do incerto para trás de nós. Só assim conseguiremos viver em pleno e não na sombra do medo.
A iluminação presente nas fotografias pretende acentuar a concepção de que o equilíbrio só existe na presença destes opostos, uma vez que não pode existir luz sem sombra, amor sem ódio, nem vida sem morte. Compreender esta dualidade é o que nos capacita para aceitar qualquer transformação da nossa realidade.
A fotografia é utilizada como ferramenta poderosa de comunicação para actuar sobre o observador de uma forma ativa, pois estimula a sua condição humana ao ver retratado de uma forma crua e sem preconceitos a intimidade e as marcas de uma batalha que habitualmente. Criar o desconforto para estimular o exercício de empatia que daí se desencadeia, resultando na sensibilização para a prevenção do cancro da mama ao mesmo tempo que pretende desconstruir a utilização alegórica e frequentemente culpabilizante da doença na nossa cultura. Conceito esse abordado por Susan Sotang em 1978 em “A Doença como Metáfora” em que defende que a maneira mais autêntica e saudável de enfrentar a doença é resistir aos pensamentos metafóricos e estigmas alegóricos que sobre ela pesam. Enquanto a sociedade não estiver preparada para lidar com doenças que ainda não estão totalmente controladas, quer na sua origem, evolução e/ou desfecho, o doente que dela padece continuará a carregar um peso que não é seu.
Foi precisamente após tornar o projeto inicial público que comecei a ter a noção do poder comunicativo que cada fotografia encerrava, poder esse com capacidade para mudar a vida de alguém, devolvendo-lhe a força e autoconfiança que a doença lhe retirou. Comecei a receber mensagens de várias pessoas localizadas em diferentes pontos do mundo – sobreviventes, cuidadores, familiares e amigos de sobreviventes – que me mostraram o quanto este projeto lhes estava a mudar as suas vidas ou as vidas dos seus entes queridos só pelo simples facto de lhes devolver a aceitação da sua própria condição.
Foi por esse motivo que estendi o projeto a outros sobreviventes, para que também eles conseguissem ver que a sua beleza, não está no exterior, mas sim na confiança e amor-próprio que nos sustenta e que nos apresenta ao mundo mesmo antes de dizer quem somos. A fotografia tornou-se assim uma ferramenta no crescimento pós-traumático das pessoas retratadas pois refletem que somos todos seres humanos perfeitamente imperfeitos, só precisamos aceitar as nossas diferenças pois são elas que nos concedem a identidade e testemunham o percurso da nossa vida.
No conjunto fotográfico do Sweet October estão retratadas 15 pessoas que partilham o diagnóstico de cancro da mama (Agostinho Branco; Ana Isabel Pereira; Ana Lopes; Carla Sofia Henriques; Cristina Filipe Nogueira; Ivete Oliveira; Lucinda Almeida; Lourdes Pereira; Maria da Conceição; Paula Pereira; Rute Vieira; Sandra Paulino Sequeira; Susana Cunha; Susana Neto e Telma Feio)
A par das fotografias está associado um exercício de empatia escrito por um artista português convidado.
Este movimento de empatia, iniciado pelos 15 artistas convidados (Alice Vieira; António Bizarro; Dirty Coal Train – Beatriz Rodrigues e Ricardo Ramos; Joana Barrios; João Gil; Jorge Palma; José Cid; Legendary Tigerman – Paulo Furtado; Lena d’Água; Moonspell – Fernando Ribeiro; Olavo Bilac; Rita Redshoes; Samuel Úria; Suzi Silva; Virgem Suta – Jorge Benvinda e Nuno Figueiredo) deu o mote para o público em geral seguir o seu exemplo. A par da inauguração da exposição no IPO do Porto, foi lançado na página oficial do facebook o movimento de empatia que desafiou todas as pessoas a contribuir para esta causa e realizar o seu próprio exercício de empatia sobre uma das fotografias do projeto e servirá para nos obrigar a parar para pensar sobre algo que habitualmente evitamos falar. É o exercício de nos colocarmos no lugar do outro e sentir as suas dores e alegrias, só assim ganhamos maturidade para sermos elementos ativos da sociedade com valor acrescido.
Este projeto continua em crescimento e atua sobre todas as pessoas que mostrem interesse em dele fazer parte, quer a fotografia se venha a tornar publica ou privada, é mais do que um projeto fotográfico, é um manifesto da superação humana, servindo de ferramenta para o seu crescimento pós-traumático. Estando a ser estruturado uma publicação em papel onde a imagem e a palavra se complementarão com o objetivo de serem elementos facilitadores para outras pessoas que possam estar a passar por situações semelhantes.
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O projeto Pedaço de Mim surgiu de um desafio que me foi colocado pela Sra. Armandina de Sousa, também sobrevivente oncológica, depois de ela ter visto o projeto Sweet December Project num programa na RTP.
O título foi inspirado no poema de Chico Buarque “Pedaço de Mim” pois à semelhança deste poema, que fala sobre a dor causada pela brusca separação de uma parte de nós, parte essa que nos vemos obrigados a deixar ir quando nos é dado o diagnóstico de cancro e que para sempre nos deixa um sentimento de saudade. Saudade da pessoa que fomos quando desconhecíamos o que nos aguardava. Saudade essa que culmina na fusão da dor com a extinção da pessoa que fomos.
Este projeto remete para a estrofe silenciosa que este poema não fala. A estrofe que existe dentro de cada um de nós e que nos estremece os alicerces, sempre que nos deparamos com uma realidade que não estamos preparados para aceitar mas que nos impele ao crescimento e devolve o poder de superação que reside dentro de cada um de nós. É a estrofe oculta por detrás das palavras que não são ditas, mas são sentidas. São as palavras sonoras transformadas em expressão visual que comunica para lá do entendimento e que nos toca no lugar inacessível ao pensamento.
Deslocar a realidade da vida de um doente oncológico para os locais públicos, que servem de cenário à série de 12 retratos, pretende criar laços de associação entre o observador e a pessoa fotografada, procurando incentivar a prevenção e diagnóstico precoce do cancro da mama mas também contribuir para a reintegração do doente através do estimulo de empatia social, através da interação num local de passagem diária. Levar a série de retratos para um local urbano, que serve de palco de vivências onde os actores se cruzam e interagem, ainda que efémero criará memórias e sensações que irão despoletar comportamentos preventivos dos espectadores, ao mesmo tempo que criarão relações sociais, através da agregação de diferentes realidades num espaço comum, contribuindo para a integração social do grupo retratado.
No conjunto fotográfico Pedaço de Mim estão retratadas 12 pessoas que partilham o diagnóstico de cancro da mama (Agostinho Branco; Ana Isabel Pereira; Ana Lopes; Carla Sofia Henriques; Ivete Oliveira; Lucinda Almeida; Maria da Conceição; Paula Pereira; Sandra Paulino Sequeira; Susana Cunha; Susana Neto e Telma Feio)
Locais: Ecomuseu Marinha da Troncalhada, Aveiro | Antiga fábrica de Papel do Caima – Quinta do Caima, Albergaria-a-Velha | Fundação de Serralves, Porto | Caves Vinho do Porto, Vila Nova de Gaia | Museu Monográfico de Conimbriga e Ruínas, Condeixa-a- Nova.
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Notas Finais:
Com estes projetos fotográficos pretendo que as pessoas tenham voz ativa sobre as suas vidas e aceitem as suas diferenças, sem preconceitos, com a sua auto-estima restabelecida. São projetos dirigidos não só para os doentes oncológicos mas para aquele que está do outro lado do espelho e que se vai aprendendo a amar, tal e qual como é.
Aprendi que o bem mais valioso é o tempo, pois é uma incógnita quantos anos nos sobram para a realização dos nossos sonhos. Desta forma partilho o meu tempo por esta causa, sem qualquer outro retorno do que a consciência que estou a dar o melhor de mim a cada dia que me é presenteado e celebrar a vida a cada instante, no que ela tem de imprevisível e espontâneo.
Durante a nossa vida temos momentos em que a dor é inevitável, mas o sofrimento causado por essa dor é opcional.
Aprender a aceitar a nossa realidade, no que ela tem de bom ou menos bom, é o caminho para sermos verdadeiramente felizes.
Autor: Ana Bee – Sobrevivente – Defensora da Causa Oncológica